Dom Cardoso
Lúcio Cardim, um cantor paulista nascido em Santos, no ano de 1932, tinha dois desgostos na vida: o primeiro era o de ter alcançado o sucesso somente aos 32 anos; e o segundo é que este mesmo sucesso – Matriz e Filial, eternizado na voz de Jamelão, a partir de 1964 e de Simone, na década de 1970-, era atribuído ao compositor Lupicínio Rodrigues. Por isso, Cardim, que morreu, quando sua música tipo dor de cotovelo começou a subir os degraus da preferência popular, dizia, nas rodas de amigos, que ganhava mais dinheiro com apostas do que com direitos autorais
Verdade. Ao compor Matriz e Filial, Cardim começou a copiar o estilo de Lupicínio Rodrigues que, em 1932, já era uma legenda no mundo musical. Esta semelhança composicional levava Cardim a reunir amigos endinheirados em cassinos, bares e buates e a perguntar-lhes se alguém sabia quem era o autor do samba-canção Matriz e Filial. Quando ninguém citava o nome dele, Cardim ensaiava um sorriso matreiro, distribuía os cartões de apostas e lançava um desafio: “Não é”, respondia. “Todos vocês estão errados”. Depois, exibia a contracapa do disco e uma certidão da gravadora, provando que ele era o autor do samba, e recolhia as apostas. El Confessava que, com essas apostas, ganhava uma nota.
Hoje em dia, qual é o boêmio, apaixonado ou freqüentador de cabarés que não conhece esta canção, admirada por todos os amantes brasileiros? Este samba-canção, muito divulgado pela grande mídia, não emprestou sua popularidade ao autor, que teve vida e carreira, perseguidas pela necessidade financeira.. Paralelamente, fez composições de grande sucesso, interpretadas por Cauby Peixoto, Ângela Maria, Jamelão, Simone e outros. Começou a compor aos 16 anos.
Em 1964, mesmo com o público sempre atribuindo Matriz e Filial e outras composições do santista à caneta de Lupicínio, Cardim, incorporou-a a seu repertório oficial e nunca deixou de interpretá-la em seus shows. Morreu em 1982, em São Paulo, a cidade que amava e onde nasceu e viveu. Era incansável em esclarecer: “Fui eu quem fiz a composição de “Matriz e Filial. Atribuí-la aLupicínio é apenas um equívoco”.
A confusão que o público fazia, em atribuir Matriz e Filial a Lupicínio Rodrigues, apoiava-se na linha melódica em ritmo de bolero, sempre associada ao clima de “inferninho”, e o tratamento dramático do tema paixão-rivalidade-arrependimento. A composição ainda seria (propositalmente?) lançada por Jamelão, o intérprete preferido de Lupicínio: “Quem sou eu / pra ter direitos exclusivos sobre ela / se eu não posso sustentar / os sonhos dela / se nada tenho e cada um vale / o que tem…”
Mas, quis a história, que o autor desses versos é e sempre foi o santista Lúcio Cardim, personagem da noite, como Lupicínio, e que integrou, em sua época, um restrito grupo de compositores paulistas, reconhecidos e gravados em outros estados. As reflexões e tiradas surpreendentes dos ambientes de cabarés, dominantes na obra de Cardim, podem ser apreciadas em “Matriz e Filial,” que ele chegou a gravar, juntamente com outras composições de sua autoria, como “Etâ, dor de cotovelo”, um LP (o único em toda a sua carreira) intitulado Obra-prima, que estourou nas paradas de sucesso, em 1978.
Até a grande mídia fazia essa confusão e citava que a canção foi feita por Lupicínio, que gostava de abordar temas de paixões desenfredas e suplicantes em suas músicas. Matriz e Filial, por exemplo, trata de um a mulher muito amada por um admirador pobre, mas que o trocava por outro, bastando que o amante eventual, tivesse mais dinheiro. Mesmo assim, o pobretão a aceitava de volta, quando o endinheirado perdia o interesse pela mulher fatal..
O cantor/compositor Lúcio Cardim deixou 250 composições, 90 delas gravadas nas mais importantes vozes da época, como as de Jamelão, Ângela Maria, Cauby Peixoto, Altemar Dutra, Nora Ney, Lupicínio Rodrigues, Nelson Gonçalves, Chitãozinho e Chororó, Dupla Ouro e Prata, Wilson Miranda, Maria Bethânia, Marta Mendonça e Simone, sem falar de outros intérpretes que passaram em sua vida..
Originalmente interpretado por Jamelão e cantado pelo próprio letrista e cantor Lúcio Cardim, Matriz e Filial encabeçou o rol de outras composições boêmias e dores de cotovelo, que competiam, propositalmente, com as gravações de Lupicínio Rodrigues. Isto deixava transparecer uma hábil manobra publicitária da Odeon, tanto para promover Lupicínio – que era dietor da empresa e seu nome estava em declino –quanto Cardim, que também gravava no mesmo selo?
Ao fazer shows por países sul-americanos demonstrou simpatia especial pelas guarânias paraguaias, ele mesmo gravando algumas em castelhano, para demonstrar ao público-fã sua intimidade com o ritmo e o idioma dos países fronteiriços com o Brasil.Quando passou a cantar na noite, por insistência do padrasto empregou–se no cais do porto. Teve algumas composições gravadas em 1959. Nesse ano, Oscar Ferreira gravou na Odeon o samba-canção “A voz da razão”, com Alberto Roy.
Em 1960, teve gravadas as guarânias “Teu amor é minha vida”, parceria com Alberto Roy, por Wison Miranda, e “Você no meu pensamento”, parceria com Mário Zan, por Valdemar Roberto, ambas na Chantecler. Em 1961, o cantor Renato Guimarães gravou a guarânia “Teus Olhinhos” e, no ano seguinte, o samba canção “Deus perdoa”. Ainda em 1961 teve o samba canção “Juízo final”, gravado por Antônio Martins e o bolero “Sigas sorrindo”, em parceria com Paulo Augusto, gravado por José Lopes.
Nesse mesmo ano, a guarânia “Conflitos Emocionais”, foi gravada pelo cantor Mário Augusto. . Em 1962, a guarânia “A Borboleta E A Flor”, com Melo Nunes, foi lançada na Continental pelo artista Luis Leão, enquanto o samba canção “Deus Perdoa” foi lançado na Chantecler por Renato Guimarães. Em 1963, o cantor José Haroldo gravou os boleros “Pergunte a Deus”, da parceria dos dois, com declamação de Muybo Cury, e Olavo Ferreira e gravou a guarânia “Tua felicidade” e o bolero “Quem perde ganha”, parcerias com Edson Nenartavis.
José Cardoso
Advogado e Escritor