Seremos um bando de cornos

Sou explicitamente um apaixonado pelos festejos juninos. Não  trocaria um só mês de junho por dois fevereiros ou quatro dezembros. Setes de setembro e quinzes de novembro então, do jeito que o Brasil anda, eu não aceitaria nem pra troco em uma possível barganha. Me conforta saber que um bom número de  nordestinos ainda pensa como eu.

Nada trago de mais  vivo na memória da infância do que o mês do milho verde, aquele plantado no dia de São José, colhido e transformado em pamonha e canjica, ou mesmo assado nas brasas das fogueiras feitas em homenagem a Santo Antônio,  São João e São Pedro, santos do mês de junho.

A beleza do meado do ano ganha outra dimensão   quando há fartura de chuva no Nordeste e a água resolve  pintar a casca da terra de verde, enchendo rios, barreiros e açudes, fazendo a festa de sabiás a bichos homens, passando por tudo quanto  é vivo. E tudo fica melhor ainda,  quando embalado pela a trilha sonora da sanfona, do triângulo e do zabumba.

Aprendemos, desde sempre, a cantar a seca com esperança, a chuva com alegria e a agradecer a boa safra, ritualmente, com dança, música, reza e poesia.

Temos como um dos maiores porta vozes dessa nossa riqueza cultural o mestre Luiz Gonzaga, que a monarquia ainda tão historicamente arraigada em nosso imaginário, faz com que o tratemos de rei, quando na verdade  ele é muito maior e melhor do que o tratamento representa, considerando a parte desastrosa do nosso período colonial.

Isso não é pouco, uma vez que esse gigante da música brasileira emprestou o talento, consistente em seu potente registro vocal e na sua prosódia profundamente identificada com esse pedaço de Brasil, para dar voz aos versos de outros nordestinos tão grandes quanto ele, a exemplo de Humberto Teixeira, Zé Dantas, Zé Marcolino e tantos outros.

Foi além. Pelos mais diversos recantos desse país chamado Nordeste, saiu distribuindo sanfonas àqueles nos quais identificava algum talento musical, fazendo revelar nomes como o de Dominguinhos, apenas para citar o maior deles.

Embrenhou-se, sertões a dentro, plantando as sementes do verdadeiro forró, dança que tem no baião um dos principais ritmos. Gonzaga foi  do litoral ao imenso semiárido nordestino, atirando as tais sementes nas leiras cavadas apenas pela sua voz e pelo instrumento que tocava, a sanfona, acompanhada de uma percussão  simples, acústica e até rudimentar para os padrões atuais.

A semeadura feita no solo seco da nossa alegria desconfiada germinou, cresceu e frutificou, tornando-se um dos mais exuberantes roçados da nossa cultura musical.

O que fica difícil de entender na atualidade e que deveria ser tão óbvio quanto o que já foi dito até agora, é aquilo que conspira permanentemente no sentido de matar uma das nossas mais caras manifestações culturais, atentando de todas as formas contra o que acabou se tornando um bem imaterial do povo nordestino.

É como se quisessem nos desestruturar a partir dos nossos alicerces. Ao que parece, o coroamento  dessa intentona seria fazer com que perdêssemos a nossa identidade. Não, não se contentam apenas em sair decepando, por falta de oportunidade, os mais viçosos troncos do que foi  plantado por Gonzaga, Jackson do Pandeiro e tantos outros. Querem nos atingir em nossas raízes mais profundas, certamente para que  um dia, sem ver nem pra quê, deixemos de nos orgulhar de quem somos.

Primeiro foi uma conspiração interna chamada forró de plástico, inaugurada no Ceará. Embora sendo berço de expoentes como Patativa do Açaré,  Belchior, Fagner, Ednardo e do próprio Humberto Teixeira, a terra de Iracema acabou por fundar, em um passado recente, verdadeiras usinas produtoras de música de baixa qualidade, de som estridente, executadas massivamente em conluio com rádios vinculadas a grandes redes.

Tais grupos caracterizaram-se por terem na sua formação apenas operários assalariados, cujos nomes artísticos sempre foram infinitamente menores do que as pessoas jurídicas das tais bandas e cujos  rótulos  comerciais beiram o bizarro, como no caso da purgativa Mastruz com Leite, apenas para citar um exemplo. Pior, esse mesmo grupo, com mais de 20 anos de estrada, como se costuma dizer no jargão artístico, já tenta se inserir, nos dias atuais, como a marca de “forró das antigas”.

Sucedeu-se, desde então, uma verdadeira enxurrada de outras “bandas”, de nomes ainda mais bizarros e plastificados. Nelas a sanfona, coitada, quando aparece é em segundo plano, repetindo intermitentemente a mesma nota, num resfolego sem qualquer beleza melódica, enquanto o cantor  ou a cantora interage de forma abusiva com o público, pedindo para tirar o pezinho do chão e levantar a mãozinha até o alto. Ou senão, muitas das vezes,  procurando saber quem da plateia é corno ou rapariga, pedindo para que se identifiquem de forma aclamativa, como se participassem de uma assembleia de categoria. Há quem goste.

Se distante estamos da palhoça e do trio animado pelo sanfoneiro e os seus dois auxiliares no triângulo e no zabumba, muito mais para trás ficou a sala de reboco da poesia de Zé Marcolino, onde o amor pedia mais fuga do que era dada  ao afoito dançarino.

A palhoça e a sala de reboco foram substituídos por    gigantescos confinamentos humanos. Um desses, que os seus criadores se jactam de ser o maior do mundo, é montado em área pública e dividido em piso, palco e camarotes.  Tem lugar  em Campina Grande e é repetido, com o mesmo formato, em várias outras cidades do Nordeste.

No palco, os elementos instrumentais antes preponderantes e ligados à tradição da música junina no Nordeste como a sanfona, o triângulo e o zabumba, foram relegados a segundo plano, substituídos, muitas das vezes, pela batida insistente de uma bateria, intermediada por sintetizadores eletrônicos e potentes amplificadores, capazes de ensurdecer e desorganizar mentalmente o público, catalisando a ação do álcool de baixa qualidade, fornecido a preços módicos pelos patrocinadores dos tais confinamentos. Os sócios desses  empreendimentos, não raro,  são ligados  ao poder executivo, numa lucrativa forma de suruba publico/privada. Ao fim e ao cabo tais arranjos são  proclamados, entusiasticamente, como um verdadeiro sucesso.

Essa proclamação à qual me refiro é feita por parte de uma mídia servil, repetitiva e às vezes até abobalhada, que nem sequer consegue  escamotear seus interesses espúrios, findando por evidenciar a rasa qualidade crítica das matérias que veiculam. Em suma,  não trazem qualquer aprofundamento discursivo sobre o tema que envolve um bem cultural tão caro.

Alguns repórteres e apresentadores, sem demonstrar qualquer estranheza com relação a cena,  até saltitam quando sobe ao palco dos festejos juninos uma dupla sertaneja ou um dos vetores dessa nova onda chamada sofrência,  para cantarem os  seus chifres. Suas criações artísticas são capazes de vir através de versos perolizados, tais como este: Tô no fundo do poço/ Bebo de guti guti/ Mas uma coisa é certa/ Se eu ligar dá merda!

Os responsáveis pela interpretação dessa belezura poética  são nada menos que a rotunda e bem paga Marília Mendonça, que esteve no centro de uma polêmica recente a qual tinha como cerne a sua participação no palco do São João de Campina.

Na outra ponta do dueto vocal e do mesmo naipe, a presença de um que já anuncia no sobrenome o que lhe cai bem mesmo como adjetivo, sem precisar nem do aumentativo. Trata-se de Wesley Safadão, cujo cachê, de valores impublicáveis, deve ultrapassar em muito o de Marília.

Nem um nem outro guardam qualquer identidade com os tradicionais festejos juninos, notadamente  naquilo que berram ou bodejam, porém carregam, na forma de agir, outra característica em comum, qual seja:  costumam doar parte do cachê que recebem na cidade onde se apresentam a uma instituição de caridade, na tentativa de diminuir a culpa pelos estragos e de amainar os índices de rejeição por parte da população como um todo.

A manobra é tão boba que chega a afrontar até aos menos dotados de alguma perspicácia, uma vez que a parcela caritativa, obviamente,  já pode vir até embutida no contrato, indo direto para a declaração de imposto de renda dos “artistas”,  produzindo  os  razoáveis abatimentos no cálculo dos impostos sobre o montante declarado dos seus ganhos astronômicos.

Mesmo diante da argumentação expendida, há quem diga que o público gosta desse tipo de música, uma vez que obedece a tudo que o artista sugere no palco,  enquanto grita e aplaude.

Quem assim se manifesta, na certa nunca ouviu falar nos efeitos da grande mídia sobre inconsciente coletivo, ou no que significa a palavra catarse, a mesma que acontece com frequência nos templos neopentecostais, operando curas milagrosas e levando multidões a um verdadeiro “estado de graças”.

Nesse particular, o de gostar ou não, recorro ao sempre pertinente Ariano Suassuna, quando ele trata dessa matéria. Assevera o mestre que cachorro não gosta de osso, cachorro só come osso porque não lhe dão carne.

Não se trata aqui, no entanto, de demonizar totalmente a música sertaneja ou o forró de plástico, uma vez que ambas tiveram seus espaços impostos pela mídia, foram parar no inconsciente coletivo e, como já disse, há quem goste ou  pense que gosta desse tipo de musica e de artista.

O que agride a mais básica noção de bom senso é que essas apresentações não possam acontecer no Nordeste em outras épocas do ano. Sobram onze meses para isso.

Melhor ainda. poderiam sim: seriam apresentadas concomitantemente durante os festejos juninos, mas não em espaços administrados pelo poder público, a quem incube, intrinsecamente, a defesa e a preservação dos nossos valores culturais. Fariam seus shows em espaços privados, às expensas dos tais patrocinadores e dos fãs desse tipo de música.

Salta aos olhos, mais ainda, o fato de um evento da grandiosidade do São João em Campina Grande ter como principal atração na sua abertura a dupla sertaneja Cezar Menotti & Fabiano e ser encerrado, depois de trinta dias de muitos outros sertanejos e sofrentes,   com a apresentação da dupla Fernando & Sorocaba, numa verdadeira afronta à pátria de Rosil Cavalcante e de Raimundo Asfora, enfim, dos tropeiros da Borborema.

Dito isto, podemos sim nos considerar um bando de cornos, mas não por eventuais chifres plantados por   em nossas cabeças da forma mais tradicional e conhecida. Muito menos seremos condenados pelo fato de nos pegarmos cantarolando, aqui e ali, um desses “sucessos”, que desfilam em versos cheios de muita cornagem, amores estraçalhados aos berros, além das tentativas de assassinato do nosso idioma, tudo isso imerso em um mar de cerveja ou de outra bebida, de preferência que faça parte  da carta de anúncios dos tais patrocinadores.

Somos cornos sim,   porque fomos e continuamos sendo traídos pelos representantes que elegemos, os mesmos a quem autorizamos fazer  escolhas em nossos nomes e eles nos chifram e nos desmoralizam sem nenhum respeito, neste e em muitos outros particulares.

São eles os mesmos que  além de provocarem um imenso rombo nos cofres públicos, como é possível ser observado  no Brasil dos últimos tempos, atentam agora contra um bem imaterial tão caro, construído a tantas mãos, e que tem o seu valor lembrado e multiplicado exponencialmente nessa época do ano, tendo ainda o condão de afagar a nossa tão maltratada estima.

Não tardará e o  São João de Campina poderá ficar com a cara  de uma dessas feiras agrícolas do interior de São Paulo ou de Goiás,  que comemoram a colheita da safra dos seus grãos transgênicos com música sertaneja e sofrência, também transgênicas, enquanto avançam impunes alargando suas fronteiras agrícolas sobre as nossas matas.

Com os seus estereótipos assemelhados aos de cowboys americanos, dançam geralmente homens com homens, aos pares,  fazendo um passinhos esquisitos, que nem de longe chega perto da beleza coreográfica do forró, que pode ser resumido como  “pas de deux” dançado juntinho, de forma sensual e bem ritmada,  geralmente  por um casal.

 

 

A continuar assim,  sem que nada seja feito, em um futuro próximo poderemos acabar tendo que admitir, meio que  sem graça, que ser corno é pop,  que ser corno é top e que ser corno é tudo.

Alexandre Henriques é cronista e jornalista